segunda-feira, novembro 14, 2005

Para além da curva do rio...

Dedico este conto à minha prima MH com aquele abraço bem solidário...



Todos os dias Saquina mete os pés descalços na estrada meia de terra, meia de alcatrão.
Em que pensa nesses longos trajectos de vai vem diários? Não conhece a televisão, não recorda novelas, não lê, não tem luz eléctrica nem água canalizada, nem obviamente máquinas de lavar. Não sabe o que é um arranha-céus e quando lhe contaram que as Twin Towers tinham caído não percebeu a tragédia. Milhares de pessoas mortas. Saquina não imagina quantas pessoas compõem o milhar.
Saquina só sabe que tem de dar muitos passos, diariamente, no vai e vem da água. Se são centenas ou milhares, não faz ideia. Nunca viu um mapa e nem saberia interpretá-lo. O mundo, para ela, é aquele à beira rio, que desabou um dia quando lhe levaram os irmãos para a guerra e a violaram. Chorou de dor, chorou de raiva. Ficou aquele filho que é só dela. Arranjou marido, sim. Um pescador. E mais cinco filhos. No meio do vinho, a pancada que lhe descarrega pelo corpo abaixo, já nem dói. Nem sente, quando abre as pernas para despachar. Nesses momentos, pensa apenas que no dia seguinte vai carregar a água, lavar a roupa ao rio, tratar da horta, apanhar a lenha, fazer a fogueira, preparar a comida. Sempre de olho nos quatro catraios que ainda por ali andam, correndo entre as cubatas. Os outros dois já partiram para a cidade grande, como acontece com todos os jovens da aldeia que correm, naturalmente, atrás dos rumores sobre a felicidade do ter.
Do que Saquina gosta mais, é dos momentos em que vai e vem na rotina da água. Da paisagem, daqueles tons das árvores, amarelecidos e verdes, dos pássaros que lançam chilreios e gritos estridentes, da terra vermelha, do céu azul. É no rio, contudo, que Saquina resplandece. Senta-se naquela pedra, sempre a mesma, deixando os pés refrescar mergulhando-os prazenteiramente nas suas águas. Balança-os ritmadamente ouvindo o chap-chap que fazem no entra e sai da água. Lança um suspiro e sorri. É então senhora do mundo. É livre. É na solidão dos seus dias à beira deste rio que Saquina encontra a paz e o alento para enfrentar as noites da sua vida.
Não sabe de onde vem aquela corrente de águas escuras nem onde termina. Pensa, então, que um dia ganhará coragem para se deitar na pequena jangada que jaz entre as ramagens. Deixá-la-á deslizar para além daquela primeira curva que vislumbra sentada na sua rocha e, acompanhando o movimento das águas, perpetuará a sua solidão e a sua liberdade viajando até ao fim dos seus dias em busca do fim do rio. Ou do princípio do desconhecido.
MC

3 comentários:

th disse...

Ao virar da curva encontrarás sempre um beijo meu...th

CB disse...

Mi, ti gossssto munto...garota!

Carlos Gil disse...

venho por-me na bicha dos beijinhos... Eu, esperançado.